Um olhar pela história da cultura afro no Norte do Brasil

Em alusão ao Dia da Consciência Negra, a Editora UEA traz como livro do mês Áfricas, Escravidão e Liberdade, organizado por Julio Claudio da Silva e João Marinho da Rocha. Abrindo espaço para estudos sobre África e Afro-Amazonas, o livro trata das presenças negras e africanas em sua diversidade na Amazônia indo de embate ao discurso de que não existe/existiu presença negra na região Norte do país, potencializando, com isso, narrativas, memórias, saberes e patrimônios compartilhados por muitas gerações de quilombolas até os dias de hoje.

A obra inicia com um artigo que analisa criticamente as representações eurocêntricas do continente africano em hq’s, utilizando como corpus as revistas Fantasma, Tintim e Soldado Desconhecido. Intitulado “África e histórias em quadrinhos” e escrito por Ivaldo Marciano de França Lima, este capítulo oferece uma reflexão inquietante sobre como as histórias em quadrinhos, especialmente direcionadas ao público infantojuvenil, contribuíram para o surgimento de diversos estereótipos racistas sobre a África e seus habitantes.

O autor sustenta a ideia de que não existem representações desprovidas de ideologias ou posições políticas: “Entender as representações existentes inseridas, neste sentido, contribuirá para que compreendamos algumas das formas que popularizaram o continente africano como exótico, selvagem e primitivo” (SILVA; ROCHA, 2022, p. 15). Ele conclui o capítulo refletindo como estas representações estereotipadas sobre a África não teriam uma grande influência no imaginário popular, levando-os a determinadas ideias de mundo estabelecidas por um grupo que inferioriza pessoas para que se mantenha o poder arbitrário, sendo estas HQ’s apenas uma pequena amostra desse pensamento coletivo preconceituoso produzido em massa?

A seguir, no capítulo escrito por Patricia Teixeira Santos, intitulado “Perspectivas dos discursos antiescravistas missionários, no contexto colonial: um olhar sobre as reflexões e experiências de Daniele Comboni e Charles Martial Lavigerie (1871 a 1914)”, é destacado o período de colonização na África Central do século XIX, em que se acreditava que as ações missionárias no Sudão, por meio da catequização e controle dos momentos livres dos escravizados, mediante disciplina de seus corpos, se garantiria a redenção. Além disso, a autora aborda que o poder regente, o meio cultural e familiar, como também as confrarias sufis e autoridades otomanas e egípcias, impunham limites a esse proselitismo cristão (SILVA; ROCHA, 2022).

Porém, após a criação da colônia de Malbes, as colônias no Egito e as missões no Sudão permitiram maior abertura para a interação dos missionários com a administração colonial, contribuindo para a hierarquização social e a ordenação das populações. A autora conclui que a história das missões católicas na África Central durante o período colonial é uma temática importante e pouco explorada, que pode contribuir para a compreensão dos cotidianos coloniais e da construção das relações sociais e políticas nos contextos pós-coloniais na África Central.

A seção subsequente, “Escravos, libertos e livres nos processos judiciais da província do Amazonas”, de Keith Barbosa e James Roberto Silva, direciona o leitor para o contexto jurídico da região amazônica, analisando documentos históricos do judiciário local. Este capítulo fala principalmente sobre a potencialidade de pesquisa nos processos judiciais, revelando as experiências de escravos, libertos e livres na Amazônia durante a segunda metade do século XIX.

Keith Barbosa e James Roberto destacam a ampliação do debate acadêmico sobre a escravidão e o pós-emancipação na região amazônica, ressaltando a importância de recompor os complexos cenários de relações sociais, espaços políticos e culturais. Eles apresentam o inventário dos processos judiciais do Tribunal de Justiça do Amazonas, oferecendo uma amostra do comportamento da sociedade e da instituição judiciária amazonense ao longo do século XIX.

Além disso, falam sobre a disponibilidade de fontes para pesquisa, incluindo casos relativos a questões comerciais, criminais, casamentos, patentes, escravos, entre outros. Os autores também ressaltam a importância das narrativas e memórias sobre as experiências históricas da população negra no Amazonas, oferecendo novas categorias analíticas e propostas inovadoras de investigação.

A parte central do livro, intitulada “Olhares sobre Estudos Quilombolas”, atravessa as comunidades quilombolas, explorando diversos aspectos de suas histórias e experiências. Os capítulos subsequentes apresentam diversas análises do imaginário das águas e o processo de territorialização em Oriximiná, memórias negras no rio Andirá, a existência de mocambos no Amazonas, processos comunicacionais em comunidades quilombolas de Oriximiná, protagonismos quilombolas no rio Andirá, intersecções de gênero na Marujada de São Benedito e a história e memória do núcleo quilombola “São Paulo do Açú”. Cada capítulo destaca diferentes aspectos das lutas, resistências e identidades dessas comunidades ao longo do tempo.

Por exemplo, no capítulo “Das Memórias Negras na Amazônia”, Julio Claudio da Silva e João Marinho da Rocha abordam a utilização da metodologia da História Oral e das Memórias Negras no Baixo Amazonas, com o objetivo de romper com a imagem cristalizada nos registros produzidos por agentes sociais externos à região e recuperar a história de comunidades negras rurais e quilombolas. Por exemplo, o contato entre negros e indígenas:

Esses negros buscavam nos contatos com os povos indígenas as saídas para construção de seus múltiplos espaços de liberdades e identidades, amocambando-se em lagos distantes ou acima das cachoeiras. A presença de índios amocambados junto aos negros fugidos aparece, com frequência, em relatórios de chefes das províncias Pará e Amazonas do final do século XIX, formando “comunidades interétnicas” […] (SILVA; ROCHA, 2022, p. 99).

Além disso, as análises dos estudos das narrativas orais dos sujeitos de Santa Tereza sobre processos identitários nos conduzem para as leituras da História da escravidão no Baixo Amazonas, a partir das comunidades negras do Rio Andirá. Os autores também mencionam a importância de analisar a presença negra na Amazônia não apenas pelo viés da quantidade numérica, mas também pelos múltiplos significados de sua presença e como ela se articulou aos espaços e mundo amazônicos. 

O livro conclui com uma análise complexa, intitulada “A presença negra no Boi-Bumbá de Parintins”, escrita por Deilson do Carmo Trindade. Neste capítulo, o autor destaca a importância de reconhecer a contribuição e a resistência das comunidades negras no contexto do Festival Folclórico. Ele conta a origem do boi-bumbá no Amazonas, que remonta a 1859, quando foi apresentado como uma dança de negros em homenagem a São Pedro e São Paulo. As figuras de Pai Francisco e Mãe Catirina, embora obrigatórias, passam quase despercebidas, e o negro, que introduziu o boi-bumbá, é silenciado à medida que o folguedo ganha nova conotação, como explica o autor no trecho:

No Brasil, segundo Nogueira (2006), quando se trata de indivíduos negros, por mais escuro que seja o tom de sua pele, é preferível que haja uma acomodação em expressões eufêmicas como moreno ou morena. Portanto, acreditamos que a morena bela cantada nos versos das primeiras toadas de boi-bumbá em Parintins é negra, foi acomodada ao termo e, como consequência, teve sua invisibilidade acentuada (SILVA; ROCHA, 2022, p. 235).

Em suma, “Áfricas, Escravidão e Liberdade” não apenas preenche uma lacuna na historiografia regional, mas também oferece uma contribuição importante para a compreensão das complexidades históricas e culturais das presenças negras na Amazônia. A abordagem diversificada e as análises cuidadosas dos diferentes capítulos organizados por Julio Claudio e João Marinho proporcionam ao leitor uma visão abrangente e esclarecedora sobre a rica história dessas comunidades presentes na região Norte até os dias atuais. Além disso, a obra responde aos desafios na escrita da história dessas comunidades negras, destacando suas estratégias de luta e resistência, contribuindo para uma história mais justa dessas populações, que, até então, foram ignoradas na região amazônica.

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