Neste mês da Consciência Negra, evocando a memória Zumbi dos Palmares (20/11/1695), a Editora UEA seleciona um de seus títulos de autoria negra e feminina como recomendação de leitura: A Literatura Africana e a crítica pós-colonial: reconversões, organizado pela Prof.ª Dr.ª Inocência Mata, é uma coletânea de ensaios escritos entre 2002-2004, cujas temáticas perpassam sobre a questão do pós-colonialismo, a relação entre literatura, história e sociedade e os processos de encontro cultural e (em) contextos multiculturais.
O livro conta com dois prefácios: um à edição brasileira e outro à edição angolana, os quais, respectivamente, são escritos pelo professor Mário César Lugarinho e pelo filósofo Luís Kandjimbo. A apresentação é escrita pela organizadora da obra, a qual elucida os leitores sobre o porquê do livro e informa ao leitor quantos ensaios compõem a obra, bem como as temáticas que serão abordadas. E o posfácio, por sua vez, é de autoria de Lourenço do Rosário, professor da Universidade Politécnica de Moçambique.
No primeiro capítulo Disposições críticas da contemporaneidade pós-colonial, somos levados a refletir sobre o porquê de a expressão “pós-colonial” ser utilizada como uma forma de atenuar toda a influência negativa que o colonialismo teve sobre as mais diversas culturas. A autora explica, a princípio, que seria muito mais efetivo utilizar expressões que denotam toda a hostilidade infligida pelo Império Europeu através da colonização, além de enfatizar que essa mesma abordagem pós-colonial não pode ser aplicada de forma homogênea, já que as experiências coloniais foram diversas entre as mais diferentes sociedades. Nesse sentido, ela afirma “reconhecer que as sociedades não foram igualmente coloniais nem são, agora, igualmente pós-coloniais, já não leva à grande produtividade” (Mata, 2013, p. 15).
Após abordar as complexidades associadas à expressão “pós-colonial”, o livro avança para o segundo capítulo, A crítica literária africana e a teoria pós-colonial: um modismo ou uma exigência?, no qual somos levados a pensar sobre qual maneira a teoria pós-colonial é aplicada às literatura africanas, se é de forma genuína ou se tornou apenas uma abordagem superficial, baseada em modismos acadêmicos. A autora problematiza o método que os críticos usam muitas vezes, a saber, de utilizar a teoria como um “manual” de interpretação e desconsiderar, assim, as especificidades culturais e históricas das obras analisadas, quando afirma que “[…] o crítico não pode ignorar as especificidades do processo colonizatório desses países e a consequente diferença no processo de emancipação política […]” (Mata, 2013, p. 27). Mata propõe que a crítica literária africana deve ultrapassar essa mera aplicação de conceitos genéricos do pós-colonialismo e se dedicar à produção de ferramentas teóricas próprias, adequadas à realidade do continente africano e de suas diásporas, afinal, as comunidades africanas já eram multiculturais antes da chegada dos colonizadores.
Dando continuidade à análise crítica iniciada no capítulo anterior, no terceiro capítulo, O crítico como escritor: limites e beligerâncias, é examinado como os críticos literários interagem com o papel do escritor em contextos pós-coloniais. Mata discute a complexa relação entre crítica e criação literária, destacando que o crítico, ao interpretar obras, também produz um discurso que se aproxima da criação artística “hoje, a tão celebrada parceria dos Estudos Literários com os Culturais vem aliviar a tensão entre arte literária e lógica teórica nos sistemas literários africanos” (Mata, 2013, p. 38). Ela analisa como os críticos podem, intencionalmente ou não, moldar a recepção de um texto, muitas vezes inserindo suas próprias subjetividades no processo interpretativo. Mata também reflete sobre os limites éticos e epistemológicos dessa prática, enfatizando que o crítico deve reconhecer o peso de sua posição como mediador entre o texto e o público, especialmente em contextos pós-coloniais.
No capítulo quatro, intitulado Even Crusoe needs a Friday: os limites dos sentidos da dicotomia universal/local nas literaturas africanas, Mata inicia apresentando casos em que a crítica jornalística europeia insiste na ideia de que a estética da literatura é uma só, ela relata: “[…] fui-me apercebendo de que não estava perante atitudes isoladas, mas sim de leitura ditadas por uma determinada visão do estético, como se os critérios do estético fossem universais” (Mata, 2013, p. 46). A autora nos mostra que na maioria dos casos, a crítica usa a falta de acesso às obras de literatura africana como justificativa para insuficiência de análises e críticas positivas, mas que, mesmo com essa falta de acesso, os críticos não se sentem intimidados ao desqualificar essas mesmas obras “[…] essa crítica, de base ostensivamente eurocêntrica e intenção hierarquizante, que parece obedecer a uma lógica globalizante, mas também cumprindo interesses de grupo […]” (p. 47).
Depois de expor os desafios da universalidade na literatura africana, no capítulo cinco A literatura, universo da reinvenção da diferença, a autora relata que muitos leitores não se dispõem a investigar mais a fundo as “implicações do que é dito” (Mata, 2013, p. 61), principalmente quando se deparam com afirmações que fogem ao habitual, as quais ela ilustra utilizando uma frase do escritor moçambicano Mia Couto “a minha pátria é a minha língua portuguesa”, que faz referência a Bernardo Soares, quando ele escreve “a minha pátria é a língua portuguesa”. O quinto capítulo nos leva a compreender, portanto, o quanto a literatura africana, a partir dela mesma, consegue se desvincular culturalmente da língua portuguesa do colonizador por meio da sua própria língua portuguesa, ou melhor, das suas próprias, pois cada país falante dessa língua possui suas próprias características linguísticas.
Avançando na análise sobre a língua e sua relação com as identidades culturais, no capítulo seis, A invenção do espaço lusófono: a lógica da razão africana, a professora Inocência Mata busca analisar a problemática da lusofonia a partir dos conceitos elucidados por Lourenço do Rosário no texto Lusofonia: cultura ou ideologia?, entre outros estudiosos da temática, tais como Alfredo Margarido e Fernando Cristóvão, por exemplo. É sabido que “Lusofonia” se trata de um conceito que consiste na abrangência de todos os países falantes de Língua Portuguesa, em perfeita harmonia. Porém, a problemática se dá a partir do momento no qual percebemos que tal união partiu de Portugal, que ao perder sua colônia mais importante – a saber, o Brasil – se viu limitada a ser um país pequeno e restrito e, consequentemente, buscou expandir seus horizontes a outras colônias.
Em seguida, a partir da reflexão sobre a lusofonia e suas contradições, no sétimo capítulo, Estranhos em permanência: a negociação da identidade portuguesa na pós-colonialidade, a professora Inocência Mata aborda as tensões entre a herança colonial e o esforço de Portugal em se reposicionar cultural e politicamente no mundo contemporâneo já que, trinta anos depois do fim do império, o que entendemos como identidade da nação portuguesa acaba sendo um compromisso entre várias identidades sociais e culturais (Mata, 2013, p. 82). A expressão “estranhos em permanência” reflete a condição de desconforto e deslocamento de uma identidade que tenta conciliar o passado imperial com um presente em que as ex-colônias reivindicam autonomia cultural. A autora convida o leitor a pensar em como essas negociações impactam não apenas os portugueses, mas também as relações com os países lusófonos.
Encerrando as discussões, o oitavo capítulo, Da língua própria como instrumento do exercício da cidadania: a implementação dos direitos civis no pós-guerra, por sua vez, retorna à centralidade da língua, agora como ferramenta para a construção de cidadania e direitos civis no contexto pós-guerra. Aqui, Mata destaca o papel da língua na consolidação de direitos civis em contextos pós-guerra, com especial atenção aos países africanos de língua portuguesa e argumenta que a língua, longe de ser apenas um legado colonial, torna-se um instrumento de cidadania, pois permite a articulação de demandas sociais, culturais e políticas. De acordo com a autora, “[…] é que a utilização da língua própria no fazer social, para além de ser um dos direitos básicos da pessoa humana, […] constitui uma das contradições desta era da globalização” (Mata, 2013, p. 108-109). Ela ressalta, ainda, que o uso da língua portuguesa pelos africanos não se limita a replicar os padrões impostos pelo colonizador, mas envolve transformá-la em uma ferramenta de autoexpressão e resistência, adaptada às realidades locais.
A Literatura Africana e a Crítica Pós-Colonial: reconversões é, definitivamente, uma obra que nos mostra as relações entre literatura, história e as múltiplas heranças do colonialismo. Ao longo de seus ensaios, é notável como a professora Inocência Mata desafia as abordagens tradicionais da crítica literária, investigando minuciosamente as especificidades culturais e históricas de obras africanas, ao mesmo tempo em que denuncia os limites da aplicação homogênea da teoria pós-colonial. Este livro não somente nos leva a questionar as narrativas impostas pelo império colonial, como também a perpassar pelas formas com as quais as literaturas africanas se reinventam utilizando a língua portuguesa deles, que antes era um símbolo de dominação e, sendo agora nossa, é utilizada como instrumento de afirmação e resistência.
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