Raízes de Parintins: memória e arqueologia da história de um povo

No dia 19 de agosto, é comemorado o Dia da Fotografia, como homenagem à criação do daguerreótipo, um dos primeiros processos fotográficos. Em razão disso, a Editora UEA seleciona como indicação do mês a segunda edição de Fragmentos: arqueologia, memórias e histórias de Parintins, organizada por Clarice Bianchezzi et al. Publicado em 2023, esse livro é um exemplo do poder da fotografia como uma forma de documentação e preservação cultural. É dividido em: apresentação do projeto; relatos de moradores da comunidade Santa Rita de Cássia, bem como a exposição de suas coleções; museus arqueológicos na Região Norte. Desse modo, essas coleções guardam narrativas, histórias e memórias de pessoas e de comunidades em temporalidades presentes e passadas, constituindo um verdadeiro patrimônio da cultura regional (p. 5).

    Fragmentos é uma obra que reúne registros fotográficos de sítios arqueológicos de Parintins, munícipio do Amazonas, na Região Norte do Brasil. Essa região, assim como as demais do estado, era habitada por diversos povos indígenas, entre eles os Tupinambaranas, que deram origem ao nome da ilha do município, sendo conhecida por Ilha Tupinambarana. O nome “Parintins” só foi adotado em 1880, quando a região foi elevada à categoria de cidade, em homenagem à etnia indígena Parintintin, uma das inúmeras que residiam na ilha. Diante disso, vários fragmentos de antigos vasilhames desses povos se encontram nos arredores de Parintins, seja na parte rural, seja na urbana, testemunhando esse passado da região, que foi modificada com a chegada dos colonizadores.

      O projeto foi idealizado por professores e pesquisadores da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), campus de Parintins-AM, o Museu Paraense Emílio Goeldi de Belém-PA e o Museu da Amazônia (MUSA), com a proposta de socializar os conhecimentos sobre as coleções arqueológicas de Parintins, tanto aquelas musealizadas quanto as inúmeras coleções domésticas cuidadosamente guardadas pelos moradores do município (p. 5). Na página 6, é exposta a foto de um morador da comunidade com uma coleção de objetos de cerâmica, também conhecidos como “caretinhas”, devido ao fato de a modelagem dar forma a seres diversos, humanos e não-humanos. Esses objetos são recolhidos pelos residentes da região, de maneira que cada família tenha a sua própria coleção. Outro exemplo desse tipo de material são as esculturas Pocó, como a que aparece na capa do livreto.

        De fato, encontrar esses fragmentos que foram forrados no solo do estado é emocionante para as famílias, sendo uma evidência do legado das etnias indígenas que povoaram e continuam a povoar a região amazônica. Ademais, a obra faz uma comparação entre as cerâmicas arqueológicas e as cerâmicas contemporâneas, sendo o modo de preparo um conhecimento repassado a cada geração, evidenciando-se a genialidade e complexidade das técnicas utilizadas. O grupo de pesquisa visitou a Comunidade Santa Rita de Cássia, em Valéria, localizada a 50km a leste de Parintins, com o intuito de catalogar os artefatos guardados e compreender, por meio dos relatos dos comunitários, os significados atribuídos aos bens arqueológicos, envolvendo a relação histórica, afetiva e de pertencimento dessas pessoas.

          Relatos de moradores da Comunidade Santa Rita de Cássia

            Para esse texto, foram selecionados alguns dos relatos presentes no livreto. O primeiro é o de Elinair dos Santos Xavier, conhecida por guardar as “caretinhas” que costuma receber, em doação, de alunos da escola que trabalha e de conhecidos da comunidade. Com uma coleção de 224 fragmentos, ela conta que muitos visitantes, pesquisadores e estudantes a procuram para conhecer mais sobre a arqueologia da região. “Eu trabalho colecionando, não para olhar o passado, mas pro futuro, pros meus filhos saberem a importância dessas peças que existem aqui em toda a região, em toda a comunidade.” (p. 13). Assim, observa-se que esse costume é uma forma de conscientizar as gerações seguintes sobre os seus antepassados, visto que um povo sem memória é um povo sem história.

              Aqui os moradores utilizavam sim as cerâmicas, tinha os alguidares bem grande, as assadeiras que eles colocam para ser servido. Eu cheguei a ver os fornos de barros bem grandes que tinham pessoas que torravam farinha no forno de barro. As cerâmicas que eu faço são diferentes das antigas” — fala de Saúde Xavier Ferreira (p. 15). Dona Saúde é moradora e faz parte da coordenação da comunidade Santa Rita de Cássia. Herdou o ofício de ceramista de sua avó. Sua coleção é composta de 6 fragmentos arqueológicos, apresentados junto com peças que ela e sua família produzem. O seu relato remete que, apesar das semelhanças entre a técnica tradicional e a indígena no preparo das esculturas, o modo de criar esses objetos foi modificado com o tempo, tendo em vista o contexto da colonização e as diversas possibilidades de preparação de massa para a cerâmica.

                Saúde Xavier Ferreira com as suas esculturas (p. 15)
                Item da coleção de Dona Saúde (p. 14)
                Foto de Ericky Nakanome com um item de sua coleção (p. 25)

                Ivone de Sá Rodrigues Oliveira é ceramista e guarda em sua residência 70 fragmentos arqueológicos, que dividem espaço com sua ampla produção artesanal. Ela fala sobre a necessidade de um museu para a comunidade, já que a maioria desses fragmentos são encontrados pelos próprios parintinenses e que, na ausência de uma instituição de preservação para eles, são guardados entre as famílias. “Tempos passados sempre houve venda, mas a gente, pra preservar, a gente tá guardando. A gente não tem um local adequado para colocar, eu guardo em casa, tem muitas pessoas que guardam também nas suas casas” (p. 19).

                  Também, tem-se o relato do gestor da Escola Municipal Marcelino Henrique. O Sr. Ernandes Gonçalves Pereira afirma que há coleções arqueológicas na instituição, que foram catalogadas em 2007 e, novamente, em 2021, com 264 fragmentos, além de uma coleção de cerâmicas contemporâneas resultantes de oficinas de educação patrimonial. “O turista vem para a Valéria por dois aspectos: pela beleza natural que o lugar contempla, e também porque fala-se muito que a Valéria é um sítio arqueológico” (p. 21). Isso afirma que, embora sejam pouco favorecidos na criação de políticas patrimoniais, os moradores dessas comunidades-sítio são importantes agentes de preservação do patrimônio arqueológico, resultando na guarda dessas esculturas nas instituições de ensino.

                    O relato seguinte é o do casal Josiele da Silva Barbosa e Lúcio de Souza Xavier. Eles guardam em sua residência uma coleção de 98 peças. Josiele conta que: “Tem muita gente que vinha querer comprar, né. Mas nunca chegou a nossa mente de querer vender essas peças não”, e Lúcio complementa que: “A história da comunidade é essa: que foram os indígenas que moraram e deixaram esse material aí”. (p. 23). Foi demonstrada uma grande preocupação em manter as peças na comunidade e um apelo para a criação de um espaço para este propósito. E ainda que essa região possua uma história pouco estudada, de modo que essas técnicas de povos tradicionais são subalternas ao conhecimento científico, que já é mais privilegiado na criação de projetos de apoio.

                      Ademais, houve a participação do professor Ericky Nakanome nos relatos. Ele trabalha na área de Artes da Universidade Federal do Amazonas e é artista visual. Possui uma coleção de 41 fragmentos, oferecidas como gratidão em forma de presentes pelo seu pai, por alunos da universidade, por familiares e admiradores do seu trabalho artístico e como docente no curso de Arte da UFAM. Para ele, “Cuidar dessas peças como essas é cuidar das pessoas e da memória das pessoas” (p. 25). Portanto, ressalta-se a importância da preservação desses objetos para a comunidade, pois é algo que faz parte da história de cada parintinense.

                        Por fim, tem-se o relato de Elionete de Oliveira Esteves. Ela possui uma coleção sobre a complexa história do Macurany, sítio localizado às margens do lago Parananema, próximo à cidade de Parintins. Elionete fala sobre a relação de afetividade com esses fragmentos, sendo parte da história de sua cidade. “Não sou colecionadora! Eu guardo cada pedaço porque é uma história. É uma história do passado. É uma história do presente que sou eu, é uma história do futuro para os filhos.” (p. 27). Vale salientar que visitar museus de demais cidades não é uma opção acessível para todos da região, e que, ao unir essas descobertas à arqueologia, torna-se possível significar e ressignificar a narrativa desses povos.

                          Visitas à museus arqueológicos

                            Para além dos relatos dos comunitários de Santa Rita de Cássia, os pesquisadores visitaram instituições de guarda desses itens arqueológicos provenientes de Parintins, pois essa relação de afetividade dos parintinenses converge para esses locais. Foram visitados três museus: o Museu Paraense Emílio Goeldi, o Museu amazônico da Universidade Federal do Amazonas e o Museu da Amazônia (MUSA).

                              Coleção do Museu Paraense Emílio Goeldi (p. 31)
                              Item do acervo do Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas e do Museu da Amazônia (MUSA) (p. 32)
                              Item do acervo do Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas e do Museu da Amazônia (MUSA) (p. 32)

                                  Localizado em Belém-PA, o grupo de pesquisa foi ao Museu Paraense Emílio Goeldi, cujas coleções de arqueologia e etnografia são tombadas pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como patrimônio cultural do Brasil desde 1940. Com um acervo de itens inteiros ou semi-inteiros que evidenciam a longa e complexa história da ocupação humana da região amazônica, o Museu Goeldi possui duas coleções oriundas de Parintins e arredores, a primeira sendo resultante das pesquisas de Peter Hilbert e Harold Schultz, em 1953, composta de 48 fragmentos e uma lâmina de machado, oriundos da região da Valéria. Além disso, há uma coleção de 5 fragmentos, da mesma região da Valéria, que foi doada ao museu em 2004.

                                    Inaugurado em 1991, o Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas também atua no apoio à pesquisa, ensino e extensão do conhecimento da Amazônia e de suas culturas. De Parintins, recebeu, por meio de doação, coleções oriundas da região da Valéria e do sítio Viana localizado na cidade, e também os fragmentos resultantes das escavações realizadas pelo Projeto Baixo Amazonas, em parceria com o IPHAN (2004-2008). Em 2014, o laboratório de arqueologia ganhou novas instalações dentro do campus universitário, preservando o acervo arqueológico, com aproximadamente 30 toneladas.

                                      O Museu da Amazônia (MUSA) é uma associação civil privada, sem fins lucrativos, que atua no desenvolvimento e administração de programas e projetos de museologia, pesquisa, educação e turismo, com dedicação ao estudo e à divulgação do conhecimento científico e social dos biomas, da história e das culturas da região amazônica. Foi fundado em 2009, possui um acervo arqueológico de mais de 30.000 objetos, sendo eles artefatos fragmentados e inteiros, amostras de solo, carvão, material ósseo, entre outros. As coleções provenientes de Parintins envolvem 306 objetos, sendo a maioria advindos dos sítios Macurany e Orla, em doação ao museu pelo IPHAN e por moradores da região.

                                        Nos comentários finais, os pesquisadores agradecem aos moradores da Comunidade Santa Rita de Cássia pela troca de conhecimentos arqueológicos e pela autorização para registro das coleções, e aos museus visitados para, também, documentar os fragmentos já musealizados da história de Parintins. As visitas a esses lugares foram essenciais para estabelecer um diálogo entre os habitantes desses sítios-arqueológicos com as instituições responsáveis por preservar o patrimônio cultural amazonense. Dessa maneira, agora que as pesquisas podem ser realizadas pelos próprios parintinenses interessados na sua história, é possível dar à arqueologia de Parintins um novo caráter.

                                          Sabe-se que o ato de colecionar é um costume histórico e científico, para conhecer melhor a história de um povo e manter essa memória ancestral. Esse hábito permite perceber formas mais efetivas de gestão para esses artefatos pouco contemplados na legislação relacionada com esses bens. Em síntese, Fragmentos é uma homenagem aos parintinenses de hoje, mas também aos povos indígenas que habitaram a Ilha Tupinambarana no passado.

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