Do “inferno verde” ao “novo El Dorado”: interpretações arqueológicas da Amazônia

Em celebração ao Dia da Amazônia, 5 de setembro, a Editora UEA seleciona como livro do mês a obra O mundo-texto arqueológico amazônico: do inferno verde ao novo el dorado, publicada em 2021 por Tatiana Pedrosa. A obra, dividida em duas partes — Um pouco da história e da historiografia de nossas imagens e A construção de duas imagens para a arqueologia Amazônica —, propõe reflexões sobre as imagens e teorias que marcaram a arqueologia amazônica, revisitadas a partir das contribuições de diferentes gerações de pesquisadoras. Ao longo do texto, a autora realiza um exercício retrospectivo da historiografia arqueológica, discutindo questões epistemológicas fundamentais para compreender o “fazer arqueologia” na região, especialmente no que tange à relação entre meio ambiente, cultura e historicidade. Mais do que comparar diferentes hipóteses, Pedrosa revela como tais leituras refletem disputas epistemológicas e a necessidade de revisões críticas constantes.

Parte I – Um pouco da história e da historiografia de nossas imagens

O livro inicia com o capítulo “Do Evolucionismo ao Neoevolucionismo: as fardas teóricas”, no qual se discute a importância das teorias como base indispensável para o “fazer arqueologia”, especialmente na Amazônia, onde os discursos oscilaram entre imagens de “Inferno Verde” e “El Dorado”. O texto ressalta que “é fundamental a leitura de uma Arqueologia Amazônica através das lentes que elas usaram na sedimentação de seus trabalhos” (Pedrosa, 2021, p. 21), destacando a necessidade de compreender as escolhas teóricas que orientaram pesquisadoras como Betty Meggers, cuja obra é analisada a partir de sua filiação ao Neoevolucionismo. Nesse percurso, o capítulo revisita o Evolucionismo do século XIX, diferenciando-o da evolução biológica, para mostrar como essas bases conceituais influenciaram a interpretação da cultura, da sociedade e do meio ambiente amazônicos.

Em seguida, o capítulo “Do Contexto ao Texto” apresenta os referenciais teóricos de Franz Boas e Leslie White como bases para entender Meggers. Boas critica o evolucionismo cultural e defende que cada cultura tem sua própria história, marcada por contextos específicos e não por leis universais. Já White, no neoevolucionismo, propõe a “Culturologia”, entendendo a cultura como processo acumulativo em que a tecnologia é o motor principal, resumido em sua fórmula E x T = C (energia x tecnologia = desenvolvimento cultural).

Posteriormente, “Na trilha de uma teoria” apresenta a arqueóloga Anna Roosevelt e o impacto de suas pesquisas na arqueologia amazônica. Roosevelt construiu suas hipóteses de forma gradual, buscando evidências materiais que confirmassem a possibilidade de desenvolvimento cultural em meio à floresta tropical, questionando o senso comum, segundo o qual “os ingredientes selva, calor e umidade […] nunca foram considerados ideais para o desenvolvimento para o desenvolvimento de uma boa receita que pudesse auxiliar o homem a se desenvolver” (Pedrosa, 2021, p. 53). Sua teoria, influenciada por Donald Lathrap, Gordon Childe e Lewis Binford, consolidou-se ao articular hipóteses com evidências materiais, provocando impacto duradouro nas discussões sobre as sociedades amazônicas pré-históricas.

Parte II – A construção de duas imagens para a arqueologia amazônica

Dando continuidade à reflexão sobre as interpretações da Amazônia, o capítulo “Dos dispositivos da construção das imagens” analisa como a noção de imagem e representação se tornou central na formulação das teorias arqueológicas. A partir da ideia de que “as figuras ou imagens que se tem do ‘real’ é sempre algo a mais do que Roosevelt quer demonstrar” (Pedrosa, 2021, p. 69), o texto mostra que tais imagens não são meros reflexos da realidade, mas discursos que circulam socialmente e moldam concepções históricas e científicas.  Nesse sentido, a arqueologia aparece como prática que, ao mesmo tempo, lida com vestígios materiais e produz narrativas e memórias, equilibrando abstração e experiência concreta. Isso explica porque a Amazônia foi representada, ao longo do tempo, ora como “Inferno Verde”, ora como “Eldorado”.

 Dentro desse debate, a contraposição entre Betty Meggers e Anna Roosevelt ganha destaque. Enquanto Meggers sustentava hipóteses ambientalistas que limitavam a diversidade cultural amazônica, Roosevelt, a partir dos anos 1980, propôs que a região seria um espaço fértil para sociedades complexas. Suas pesquisas em Pedra Pintada e Marajó forneceram evidências de longa duração, estratificação social e inovação tecnológica, questionando os modelos deterministas. Como afirma Roosevelt, suas descobertas revelaram um “quadro rico e complexo da Amazônia pré-histórica” que “contradiz antigos pontos de vista baseados na ideia da pobreza ambiental” (Roosevelt, 1992, p. 34 apud Pedrosa, 2021, p. 92). Assim, mais do que disputar teorias, o capítulo evidencia como as diferentes imagens da Amazônia refletem disputas epistemológicas que marcaram a arqueologia brasileira.

Em “O mundo-texto arqueológico amazônico” é discutido como a Arqueologia Amazônica se constrói por meio de narrativas, em que vestígios materiais só ganham sentido quando transformados em discurso. Nesse processo, destacam-se duas tradições centrais: a de Betty Meggers, que via a floresta como um “falso paraíso” limitador das sociedades, e a de Anna Roosevelt, que propôs a existência de culturas complexas e inovadoras, configurando um “Novo El Dorado”. Ambos os modelos, embora influentes, refletem mais os contextos teóricos de suas autoras do que uma verdade absoluta sobre o passado amazônico.

Pedrosa argumenta que é necessário superar tanto o reducionismo ambiental quanto a idealização simbólica, reconhecendo a arqueologia como um ato de memória e de produção de significados. Afinal, “construir, reconstruir ou desconstruir uma memória significa, antes de tudo, transformar realidades” (Pedrosa, 2021, p. 113).

No capítulo final, “Algo que não termina nunca”, é comparado a arqueologia amazônica aos “causos” caboclos, que nunca chegam a um fim, mostrando que o conhecimento sobre o passado da região está sempre em construção. A autora revisita as diferentes leituras da arqueologia amazônica — do determinismo geográfico aos modelos evolucionistas e difusionistas —, evidenciando como tais estudos, ao tentarem explicar a complexidade regional, acabaram muitas vezes por impor narrativas externas. Pedrosa, ainda, defende a valorização da pluralidade cultural e a necessidade de manter a arqueologia em diálogo aberto.

O livro O mundo-texto arqueológico amazônico: do inferno verde ao novo el dorado constitui uma contribuição essencial para compreender a trajetória da arqueologia na Amazônia e as disputas teóricas que moldaram a forma como a região foi vista ao longo dos anos. Ao comparar as pesquisas de Meggers e Roosevelt, Pedrosa mostra que a arqueologia não trata apenas de objetos antigos, mas também das imagens e narrativas que construímos sobre o passado.

A obra é recomendada tanto a estudantes e pesquisadores de Arqueologia e Antropologia quanto a leitores interessados em história da ciência e nos debates sobre a Amazônia. Ao mesmo tempo em que revisita teorias clássicas, O mundo-texto arqueológico amazônico abre espaço para pensar novos caminhos, reafirmando a ideia de que o conhecimento arqueológico é um processo em constante construção.

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