A Editora UEA indica a obra O mostrador da derrota: estudos sobre teatro e ficção de Márcio Souza, que se apresenta como um arquivo crítico das obras de Márcio Souza, reunindo ensaios, artigos e resenhas de professores e pesquisadores sobre o autor amazonense. O livro é um convite para a leitura das produções literárias do escritor analisado e releitura para aqueles que já o conhecem. Nele há uma divisão de temáticas para análise: “teatro” e “ficção”. Os organizadores da coletânea são os professores doutores Allison Leão e Marcos Frederico Krüger.
TEATRO
A parte 1 do livro é focada no recorte “teatro” e possui dois trabalhos analisando os aspectos dramatúrgicos das obras de Márcio Souza. O primeiro, Um mito teatralizado: A paixão de Ajuricaba, por Marcos Frederico Krüger, examina a tragédia de Ajuricaba, líder da resistência das tribos indígenas do Rio Negro contra os colonizadores portugueses na terceira década do século XVIII. O enredo da história se concentra nos conflitos entre o povo de Ajuricaba e os europeus, provocando até mesmo ataques a tribos que estavam contrárias aos interesses do herói. Ajuricaba acaba sendo capturado mais tarde após conflitos sangrentos, mas pulou da canoa que ia para Belém, desaparecendo sem deixar rastros e se consagrando como símbolo de coragem, liberdade e inspiração, semelhante ao sebastianismo. Termina, então, a primeira resistência organizada de forma trágica contra o colonialismo português. A relação da obra com o teatro é estabelecida em alguns momentos da obra, como quando Ajuricaba, como tuxaua manau, tem uma ascendência, como diz Aristóteles sobre o trágico como uma imitação de seres superiores, além da profunda relação com os clássicos da tragédia grega, uma vez que o herói se enquadra no homem ideal e sonhado pelos gregos. O estudo geral da obra reforça que as concepções artísticas atípicas servem como uma ressurreição de fontes primitivas anteriores até mesmo aos mitos, sendo uma excelente adaptação de um texto trágico para a realidade amazônica.
O ensaio de Zemaria Pinto, Deuses, heróis, bufões: uma dramaturgia amazônica, é o segundo e último trabalho da primeira parte do livro, começando pela apresentação das premissas do teatro e o gênero dramatúrgico. O autor divide as obras dramáticas do escritor em quatro blocos: peças míticas, tragédias amazônicas, chanchadas amazônicas e peças cariocas. “Dessana”, com a cosmogonia apresentada do mito da criação e explicação cultural e “A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê”, com o direcionamento de uma moral ao público infantil, são peças míticas. “A paixão de Ajuricaba” possui, no romance, elementos místicos e religiosos, enquanto “Pequeno teatro da felicidade” configura o enredo com metalinguagem, uma peça dentro da peça, sem a temática indígena; ambas as obras são tragédias amazônicas. Nas chanchadas amazônicas, “As folias do látex” conta sobre a criação do Teatro Amazonas, o mais glorioso símbolo do ciclo da borracha, e “A resistível ascensão do Boto Tucuxi” apresenta Manaus e sua decadência de Paris dos Trópicos a ruínas, durante o período da Segunda Guerra Mundial. Por fim, as peças cariocas tratam de ambientações fora do Amazonas e temas historicamente superados, como em “O elogio da preguiça” e “Ação entre amigos”, ambas com temáticas políticas críticas.
Pinto ressalta que Márcio Souza não é apenas um escritor literário regionalista, já que são discutidas nas obras a relação do homem contemporâneo com as práticas, hábitos e mentalidades sociais, temas que não se restringem ao regional.
FICÇÃO
A parte 2 do livro discute sobre o tema da “ficção” presente nas obras de Márcio Souza. Galvez, Imperador do Acre: uma leitura, por Neide Gondim, é o primeiro da ordem dos trabalhos expostos. A história retrata a dicotomia entre a política governamental e os coletores de látex, e também os mitos indígenas revelados depois de serem escondidos pelos brancos por muito tempo. Protagonizada pelo herói Dom Luiz Galvez Rodrigues de Ária, personagem que foi para o extremo norte a fim de enriquecer. Um ponto marcante na obra é a configuração de três narradores: narrador-autobiográfico, narrador-crítico e narrador-alinhavador, este último com o propósito de alinhar a narrativa à realidade, desmistificando a Amazônia. Para a autora, Márcio Souza “se socorre da história, não a encobrindo com falso moralismo, ufanismo regionalista, o apego ao telúrico ou paternalismo” (p.73). A sociedade regional fica refém da manipulação da economia regional por pessoas com interesses divergentes. O rompimento do regionalismo acontece quando o autor perpassa os limites temáticos, trazendo universalidade à obra.
Em seguida, o trabalho Na garganta da selva: as memórias de Galvez e a representação literária da Amazônia, Marco Aurélio Coelho de Paiva discute sobre a relevância da Amazônia no Movimento Modernista de 1922, que supera e rejeita o academismo passadista que só expõe a literatura regional em exotismo e aventuras, mostrando também que o Márcio Souza tem como objetivo realizar um diagnóstico e um diálogo com a tradição literária construída sobre a Amazônia além do que já é proposto por literatura regional, interpretando a região e destacando mais os atores sociais regionais do que a paisagem como em antigos movimentos literários. É evidente que o escritor amazonense recebeu fortes influências modernistas de Oswald de Andrade. Paiva também comenta a atuação do narrador-alinhavador em “Galvez, o imperador do Acre”, pontuando a sua interferência na narrativa para chamar a atenção do leitor para os exageros do anti-herói e completando as partes incompletas. A Amazônia “carnavalizada” (“a carnavalização da literatura” é um conceito explorado por Bakhtin na sua obra Problemas da poética de Dostoiévski) é uma mescla da linguagem e temática que Márcio Souza utiliza desses recursos para representar o contexto amazônico de forma que ninguém mais o fazia na época.
O romance “Operação Silêncio”, de Márcio Souza, é analisado por Nicia Petreceli Zucolo, questionando na obra o que de fato é o Brasil e a sua relação da arte com a política. O escritor utiliza-se da figura de Oswald de Andrade como resistência e consciência intelectual. Além disso, segundo a autora, o livro é um painel cultural, contemplando diretores, atores, atrizes, personalidades e filmes que se consagraram como referências em suas épocas. O protagonista da obra, Paulo Conti, é um sobrevivente que une o cinema e a literatura com uma consciência política que foi reprimida pela Ditadura Militar, que censurou os cineastas e os transformou em homens que apenas faziam filmes. Para resistir e lutar, ficou implícito que a arte era o instrumento necessário. Conti consegue vencer com seu filme sobre colonização e mantém seu sonho intacto de um futuro melhor.
Os antilições do riso: O brasileiro voador é um ensaio de Allison Leão sobre o sétimo romance de Márcio Souza, que teve seu formato em folhetim. A análise proposta é referente à imbricação entre subjetividade e historicidade na obra. Santos Dumont é o personagem principal do enredo literário e fictício Leão cita o conceito de Hutcheon (1991) para explicar a característica narrativa do livro a “metaficção historiográfica”, pois a obra é autorreflexiva e chama a atenção para a textualidade do passado, enchendo de parodização e caracterização. O romance sugere leveza, pois não se prendeu ao discurso histórico grandiloquente e também não impôs um moralismo subjetivo.
Entre as margens da teoria e a correnteza da fantasia: um estudo sobre O Fim do Terceiro Mundo, trabalho de Vânia Pimentel, analisa a inserção de Manaus no século XX e seu contexto socioeconômico na obra de Márcio Souza. A intertextualidade faz-se presente no romance com uma mescla de personagens fictícios (Pietro Pietra Jr., Iaci e Ceuci) e reais (o próprio autor, Lygia Fagundes Telles, João Ubaldo Ribeiro etc.), o que traz comicidade na interatividade desses personagens. A Amazônia representada na história é exótica e fantástica, trazendo verossimilhança ao passo que a nega. A intertextualidade também serve de pretexto para abordagens de assuntos mais polêmicos, como Capitalismo x Socialismo. O escritor consegue usar a alegoria como meio de discutir questões relevantes sobre a Amazônia, até o desfecho da narrativa. O caráter documental da história é passado pela forma fantástica de modo a tornar a leitura dinâmica e cômica.
A Caligrafia de Deus: ilusão e tragédia nos trópicos, por Tenório Telles, analisa os cinco contos presentes no livro homônimo. Márcio Souza compromete-se com a realidade da vida e seu presente histórico, levando à reflexão da dura realidade do Amazonas na ficção: a luta de classes. “A Caligrafia de Deus” tem como tema a miséria, as drogas, o desemprego, o desenraizamento cultural, o meio ambiente, a violência numa ambientação urbana. O autor da obra vivenciou a ditadura, o que o fez desenvolver sua consciência política, escrevendo livros com críticas sociais e de denúncia à realidade política do país, mas com enfoque em Manaus e o descaminhos sociais e econômicos da Zona Franca.
Por último, A sinuosa escrita divina por rios, ruas e becos, de José Almerindo Alencar da Rosa, revisa também “A Caligrafia de Deus”, apontando o enfoque na expressão “escrevendo certo por linhas” como a ironia central que rege os acontecimentos no livro. Manaus é descrita como a cidade mais odiada do mundo, onde há só miséria, conflito e fome, mas o tema é suavizado pela fluidez narrativa com tom irônico e humorístico de Márcio Souza, uma ironia contagiante representada nas contradições das personagens em meio ao descompasso entre a dura realidade do homem amazônico e o crescimento industrial e comercial da capital. A obra foi renovada e passou por correções gramaticais e atualização dos dados, uma vez que a primeira versão era censurada e a segunda vem no período democrático. O estilo geral do autor é uma tentativa de unir a literatura de massa à literatura reflexiva.
A coletânea de artigos, ensaios e resenhas organizadas pelos professores doutores Allison Leão e Marcos Frederico Krüger retoma a importância de Márcio Souza como um escritor literário com obras complexas e profundas ligadas ao estado do Amazonas, principalmente. As críticas e análises apresentadas incentivam à leitura dos romances e contos do autor, já que as temáticas exploradas nas obras são cativantes para aqueles que tenham interesse em conhecer melhor a história e cultura amazônica e o processo literário que surgiu a partir delas.
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